sexta-feira, 5 de março de 2010

Intervalo Doloroso - Fernando Pessoa

Tudo me cansa, mesmo o que não me cansa. A minha alegria é tão dolorosa como a minha dor.
Quem me dera ser uma criança pondo barcos de papel num tanque de quinta, com um dossel rústico de entrelaçamentos de parreira pondo xadrezes de luz e sombra verde nos reflexos sombrios da pouca água.

Entre mim e a vida há um vidro tênue. Por mais nitidamente que eu veja e compreenda a vida, eu não posso lhe tocar.

Raciocinar a minha tristeza! Para quê, se o raciocinio é um esforço! e quem é triste não pode esforçar-se.
Nem mesmo abdico daqueles gestos banais da vida de que eu tanto queriria abdicar. abdicar é um esforço. e eu não possuo o de alma com que esforçar-me.

Quantas vezes me punge o não ser o manobrante daquele carro, o cocheiro daquele trem! qualquer banal Outro suposto cuja vida, por não ser minha, deliciosamente de me penetra de eu quere-la e se me penetra até lhe alheia!
Eu não teria o horror á vida como uma Coisa. A noção da vida como um Todo não me esmagaria os ombros do pensamento.
Os meus sonhos são um refúgio estúpido, como um guarda-chuva contra um raio.
sou tão inerte, tão pobrezinho. tão falho de gestos e atos.

Por mais que por mim me embrenhe, todos os atalhos do meu sonho vão dar a clareiras de angústias.

Mesmo eu, o que sonha tanto, tenho intervalos em que o sonho me foge. Então as coisas aparecem-me nítidas. Esvai-se a névoa de que me cerco. E todas as arestas visíveis ferem a carne da minha alma. Todas as durezas olhadas me magoam o conhece-las durezas. Todos os pesos visíveis de objetos me pesam por a alma dentro.

A minha vida é como se me batessem com ela.